Torpor e bem-aventurança...


Sentada à beira de um caminho. Inerte diante da realidade ilustrada. As luzes se confundem entre o tardar do dia e a origem brilhante da noite. Pessoas passam apressadas sem notar a existência delas mesmas, e se amontoam em transportes fétidos, acalorados e sem vida. Milhares de seres de endereços fixos e completamente perdidos dentro de si mesmos. Vejo árvores cansadas salpicadas ao meio de uma cordilheira de concreto. Elas balançam tristes, acanhadas e amarelas. São minoria, são canções excludentes de seus sons naturais. Águas sujas escorrem pelas sarjetas, alinhadas pela escravidão de não haver escolha. Não são tratadas, estão casadas com esgotos e restos do mundo, e seguem resignadas na esperança de voltar ao seu berço, agora imundo: os rios. Os botecos da rua se fecham. Foram o dia todo alimentados pela necessidade de pessoas que não tem tempo de voltar ao lar, nem dinheiro para escolher. Estas, comem ovos coloridos que foram imersos e cozidos em água bruta e nas cores da indústria. Olho para o céu... Nele se formam manchas cinza, numa mistura perfeita entre a luta de nuvens que querem fazer o seu papel e a massa imensa de uma poluição parida por nós mesmos. Densos feixes escuros sinalizam os gritos trovoados que estão por vir. Os carros se espremem entre as vias e os semáforos, onde motoristas estressados e cheios de medo, não abrem seus vidros. Preferem o sufoco de um calor estridente á perder a vida pelas mãos dos filhos da rua, que armados até os dentes destilam, nos cruzamentos, seu único aprendizado. As sirenes de inúmeras viaturas ecoam e riscam o asfalto. Ora no socorro de vítimas, ora assinalando mais um crime. Em ambos, sei que alguma vida há de se perder. Crianças puxadas e levadas pela pressa de pais que ficam dançando em cima da linha tênue que separa o sustento e a demonstração de amor. Procuro em cada cantinho desse retrato da dura rotina que virou a existência humana, e não acho um sorriso, um afago, um carinho. Rostos sisudos pela dureza da mão da vida... Chãos cheios de passadas insanas... Paredes de fé abortada... Veículos carregados de mágoas... Uma terra que pede socorro. Não vejo tempo nem desculpa para a volta, nem mesmo vejo mãos estendidas para ninguém. E quando dei por mim, a noite havia nascido, mansa e escura e eu ainda sentada à beira desse abismo. Olhei nos olhos dessa noite que brilhavam incessantemente em cima dessa paisagem torpe. Mesmo assim ela ainda cintilava na glória de suas estrelas. E uma chuva fina e prateada caia sobre mim. Senti na pele uma espécie de perdão líquido, o qual poderia ser escorrido por toda aquela multidão agonizada. Uma lua imensa surgiu com ar angélico e generoso. Iluminou toda a rua, antes tão sombria. E essa luz invadia todas as frestas e todos os pecados. Nesse renascimento pude ver os sorrisos que procurava e percebi que nos céus estão todas as respostas. Nossa maior morada há de ser nesse refúgio bendito... Lá vivem nossos minutos de fé e de esperança, antes que se nasça outro dia...






Ka Santos


Um comentário:

  1. Bem bonito o texto, Ka. Parabéns pela inspiração/!

    "perdão líquido" \o/ **lindo!**

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